quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Viajar para aprender, parte III - ROTA CAMPOS DE CIMA DA SERRA, Monte Negro



      Fazia bastante calor quando deixei Porto Alegre para trás. Ficou para outra ocasião ver o pôr do sol no lago Guaíba, elogiado por várias pessoas de passagem por lá.
      Pelas informações do meu GPS, eu iria chegar ao final da tarde em São José dos Ausentes, o que de fato aconteceu.
     De forma semelhante ao relato anterior, da capital até as proximidades da Rota dos Campos de cima da Serra, não havia nada que chamasse atenção a ponto de parar. O negócio era andar. Boas estradas. Novamente cruzando municípios, alguns por fora, outros por dentro, cortados pela rodovia.

     É interessante se começarmos a pensar nas 24 horas que temos em cada dia. Obviamente uma parte dessas nós usamos para o descanso. Mas as outras... De que forma as ocupamos? Dependendo de onde estamos elas passam lentamente e nós não progredimos em nada. A vida não para, pelo contrário, se dissolve, aos pouquinhos, bem devagar, ao passar das horas, dos minutos. À isso me refiro ao nosso corpo, na questão biológica.
      Há algum tempo atrás li algo que me fez pensar bastante. “Nós começamos a morrer a partir do momento em que nascemos”. É a passagem transitória do nosso espírito, envolvido num corpo extremamente sensível e vulnerável, com prazo de validade. Dentro dele, num dos locais mais misteriosos que existe, a mente humana, estamos de verdade. Não sabemos há quanto tempo. Nem por onde ainda passaremos. Mas a rota, ela é para frente, rumo ao crescimento, aprendizado, evolução como ser humano, como pessoa, o crescimento espiritual.

     Então quando você se encontra numa estrada e tens o dia todo para percorrer caminhos, passa a perceber que se pode fazer muita coisa em um dia, ver e aprender muito. Isto apenas depende de onde você se encontra, para onde quer ir e se tem liberdade de fazê-lo. Aí entra a questão da vontade e iniciativa de fazer acontecer, e enquanto isso, talvez o principal; como você se sente fazendo tal coisa. 
     Nietzsche foi citado uma vez por um professor pelo qual eu tinha muito apreço. “Se te apetecer fazer algo, faça”!. Lógico que à isso caberia muitos parênteses e considerações, mas vale do mesmo jeito. Faça, mas consciente. Tudo implica em resultados. Ganhos e perdas. Escolhas e consequências. São as estradas, caminhos que escolhemos trilhar e descobrir.
     Uma vez que você se encontra fazendo alguma coisa e com isso se sente bem, limpo em consciência, tranquilo, esteja certo que é aproveitamento e crescimento, de uma forma ou de outra.
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     Entrando na região da serra gaúcha, passei muito próximo de Canela, Gramado, cidades muito conhecidas pelo turismo brasileiro. De fato muito bonitas, com vários atrativos. Pude conhecer um pouco em anos anteriores durante uma excursão junto com familiares, foi um passeio muito interessante. A serra gaúcha é linda e essas duas cidades, juntamente com Bento Gonçalves e Nova Petrópolis conquistam qualquer pessoa pela beleza, o capricho, a limpeza e organização, os atrativos nelas encontrados.
      Tomei outro rumo, estava me aproximando do destino.
     O visual dos campos de cima da serra é particular. Região alta, a visão vai longe, colinas com pastagem verdinha, tornam uma imagem diferente à qual estamos acostumados no relevo acidentado das terras do Vale e Alto Vale do Itajaí. No inverno continuam atraentes, pelas geadas que branqueiam o campo. E o frio cortante do sul.
     A estrada para São José parecia um tapete, novinha, permitia desenvolver uma boa velocidade, dentro dos limites.
     3 de Janeiro. O aniversário de uma data que há um ano atrás me derrubou no poço da angústia e numa tristeza sem tamanho. Mas não queria mais lembrar disso.
     
     Bem perto da cidade, dei comando ao GPS, destino: Cânion Monte Negro. Ponto mais alto e mais frio do RS. Com 1403 metros de altitude.
    Passei pelo portal de informações turísticas, bem na entrada da cidade. Estava fechado. Olhei a hora, 18:15. Parei.
     Logo abaixo a cidadezinha, pequena e calma. Poucas pessoas, um carro ou outro se movimentando. Um pouco de vento, como se fosse uma brisa mais forte, já era sinal que me encontrava numa região bem alta. Agradável para um final de tarde, nem perto do abafamento dos locais em altitudes menores.

       Consultei o aparelho. Os satélites informavam que estava distante 45 quilômetros do Monte Negro. Fácil pensei. Escurece depois das oito. Apontei o bico do carro para a rota e me larguei. Sabia que iria entrar em fazendas, percorrer estradas de chão. Só não contava que seria tanto assim. Ida e volta 90 quilômetros. A margem de erro desses aparelhos, pelo menos dos melhores, é mínima.
     Olhei para o banco do carona. Imaginei o pai ali. Com os olhos arregalados me dizendo: tá loco rapaz, não não. Vamos voltar. Só falei pra ele das estradas que percorri quando estava de volta. Do jeito dele só balançou a cabeça negativamente. Somente depois de ver algumas fotos, acabou aprovando. Até hoje eles não sabem de como passei a noite em Porto Alegre. Pai e mãe não mudam nunca, embora os filhos já sejam grandes.

     Fui tocando em frente. No começo a estrada permitia até uma quarta marcha. Me animei. Até parece que não me criei em interior e tinha esquecido que essas estradas lizinhas de chão escondem surpresas. Não ia demorar para eu voltar a realidade.
    30 quilômetros ainda por fazer. Campo para um lado e para o outro. Só a estrada rasgando os pastos. Cutuquei mais um pouco o motorzinho. Estrada limpa. No retrovisor não se via mais nada, só poeira. Se eu fosse bem devagar teria que acampar no Monte Negro, ideia que passou por minha mente, mas era proibido. O carrinho ia levando uma pancada ou outra, um buraco aqui outro ali, pedras soltas começavam a aparecer e tive que reduzir um pouco. Joguei uma terceira na subida de um morro e na dobra, bem em cima, o que ainda eu não tinha encontrado, me devolveu a consciência de que eu não estava em asfalto. Um baita buraco. Pisar no freio que nada. Não deu tempo e seria muito pior, pois rebaixa a suspensão e o efeito é destruidor. Firmei a direção e esperei aquele milésimo de segundo, o soco. BÃHMMM!!. Um barulho que pensei,  pronto, agora fico aqui mesmo. Mas o volante ainda estava na mão. O carro continuou andando. Tá valendo.
    Loucura, talvez. Por outro lado gera adrenalina e isso estava valendo pra mim.

     Saíram umas palavras mal educadas. A barulheira foi grande. Não quis nem parar pra ver o estrago. Vamos indo enquanto anda. Gostaria de ver a minha cara de assustado.  Fui em frente mais calmo um pouco no acelerador. Direção normal, nenhum barulho permaneceu além do comum. Respirei aliviado, mas não parei. A última vez que ouvi um barulho grande e passei por cima de um obstáculo, pude ver o estrago que um cão maluco suicida fizera no automóvel.
     Cruzei uma vila, acho que a 3ª ponte também. A estrada ficou um pouco mais estreita e aumentaram as pedras. Algumas bem grandes, nas subidas, descidas. Gostaria de ter um jeep, pensei. Qualquer carro mais alto seria bem vindo. Isso que eu nem imaginava ainda, por onde iria passar em terras catarinenses, bem perto de casa!
     Sete horas e ainda uns 15 quilômetros, apertei mais um pouco para dar tempo de chegar ainda bem claro no cânion. Agucei a visão e depositei todo o meu instinto de observação e golpe de vista sobre os buracos e pedras. Andava em quarta marcha, espetava terceira em subida, voava pedra pra todo lado, meu carro não resmungava e eu provocando. Velocidade boa e risco também de roçar a beirada da estrada. Tais loco home! Alguém poderia dizer. "Sê bobo rapaz"!
     Tinha visão. Ninguém na estrada. Enquanto o risco era só pra mim estava tudo bem.  Reduzia em curvas obviamente. E se... e se... sim eu também pensava em se... Olhei de novo para o banco do carona, ri sozinho ao imaginar o pai agarrado firme sem falar nada. Pensei no meu filho, na cadeirinha no banco de trás. Provavelmente bem louquinho com essas “banguela” (na linguagem dele) do papai. Mestre, quem sabe você me acompanha!
    Tenha mais calma, pra quê tanta pressa? Estava sozinho, queria conhecer o máximo em cada dia. Meu objetivo era chegar naquele ponto, e iria fazer isso.

     Depois de pular mais do que cabrito, cheguei numa porteira aberta. Uma placa grande mostrava uma seta para a direita. Cânion Monte Negro. Era a entrada de uma fazenda.


     Com respeito, fui me deslocando devagar com o automóvel. Achando que logo em frente estaria alguma casa ou a pousada. Vai e desce. Sobe de novo. Cheguei na sede. Uma pousada. Casinhas para pernoite. Em uma delas dois jeeps, um Troller e um Land Rover. É, onde estou me metendo pensei. Queria ter um desses.
     Um senhor estava à cavalo. Pedi permissão e me apontou o caminho em frente. Só fecha a porteira, disse ele! Dá uma apurada que tem que andar um pouco também! Alertou.
     Não dava. Pedra pra todo lado. Passei não sei como. Acho que por estar sozinho e o carro ficar bem leve. Com um  pouco de peso, esquece. 3 mata-burros  com trilhos de trem. Cheguei no ponto de estacionar. Chão bem batido. Marcas de pneus frescas. Alguém já tinha ido ali no mesmo dia. Nem olhei a hora. Peguei meu celular e a câmera amadora que uso, tranquei o carro e fui. Devo ter andado uns 500 metros ou mais até a borda.
     Só ouvia meus passos sobre uma trilha. O som do vento e das andorinhas. O capim balançando no ar agradável. Queria vê-lo logo.
    Ao chegar no topo de uma pequena elevação. Era ali. 
    Uau! Disse para eu mesmo ouvir. Cara! Que massa! No fundo eu queria ouvir meu filho dizer, que paisagem linda!

     Estava ali, no final daquele dia 3 de janeiro, tinha passado uma noite do cão em Porto Alegre, vi a lambretta, fui no museu da PUC, rodei até Ausentes, passei por fazendas, caminhei e agora estava no ponto mais alto do estado gaúcho. O Monte Negro. O sol já estava bem fraquinho, se pondo do outro lado, não dava de ver, do contrário teria sido perfeito! Me aproximei mais. Cuidado piá! Se cair aí "adeus tia chica". Sim, ouvi minha intuição.

   Estava completamente sozinho. Uma imensidão no meu entorno. Campos sem fim. Mas cheguei na última hora pois as nuvens já cobriam quase todo o cânion, sendo possível ver uma pequena parte.
    Não faz mal, pensei. Fica bonito da mesma forma, uma imagem diferente, como se tu tivesse no nível das nuvens, numa mistura de verde e branco.

    Fui para um lado, para o outro... sentei numa pedra. Tirei umas fotos. Pensei em como a natureza é interessante e Deus tão maravilhoso que permite um mundo incrível como esse, para nós conhecermos! E tudo como isso aqui, tão perto! Por que não vim antes?... Acredito que porque tudo tem sua hora, seu momento certo de acontecer, começar ou acabar!

    Eu viria outro cânion no dia seguinte, o famoso Itaimbezinho, em Cambará do Sul. No outro relato comento sobre essa formação natural geológica. O que enfrentaria em termos de estrada no dia seguinte, me fez considerar essas um asfalto!

    A luz diminuiu consideravelmente. Está na hora de voltar. O gado já se aproximava do mato ao lado, um capão de pinheiros. Talvez dormissem ali durante a noite. Vai que tem um bicho bravo aí no meio. Apurei o passo. Logo estava no meu carro. Foi ali que olhei se tinha algo quebrado, torto ou sei lá, alguma coisa estragada depois daquele buracão. Nada. Tudo no lugar. Foi só o susto mesmo e uma forçada boa na suspensão. A mola bateu por chegar ao final do curso e junto com o amortecedor, fez um barulho forte, num soco bem seco de ferro no ferro.

    Dei os parabéns para o meu simples carrinho. Fiz mais umas duas fotos e voltei. Passei pelo mesmo caminho. Fechei a porteira!

    Em frente a pousada, um grupo de pessoas estava conversando, pensei em parar. Mas eu tinha colocado como objetivo, voltar para Ausentes e dormir num hotel. Acenei agradecendo, responderam da mesma forma.
    Enfrentei todo o trecho de volta, dando mais tranquilidade para a suspensão do automóvel. Aliviei a pressão sobre os 3 cilindros. Feliz eu estava. Quando cheguei na cidade, logo ao lado de um posto de gasolina, um hotel. Parei.
    Uma moça atenciosa me mostrou o que tinha para pernoite. Um quarto grande, com todo o luxo. Meu Deus eu disse, me veja algo mais simples, não preciso disso tudo. Só vou ficar essa noite, uma cama e um bom chuveiro está ótimo! São todos os quartos assim disse ela, somente para casais. Tudo bem então. Não me importo. Paguei cem reais para passar a noite. Achei um pouco caro e não me ofereceram café da manhã. Tive que pagar o café na lanchonete do posto.

     Antes de dormir, o estômago reclamava algo diferente de frutas. Pedi referências no posto e me apontaram logo em frente uma casa simples, um pouco torta, de madeira, telhado meio desbeiçado, transformada em um bar onde se faziam lanches. Podes comer algo ali, me disseram, é simples, mas caprichado, não te preocupe. Assenti e confiei.
    Em vinte passos eu já estava fazendo o pedido. Um X gigante foi trazido. Uma coca bem gelada. Que coisa boa! Estava do lado de fora, sozinho em uma mesa. Observando, pensando, revia algumas fotos no celular, alegre pelo que pude ver.  Em frente outra mesa, cinco pessoas, 4 homens e uma mulher. Conversavam sobre o dia de trabalho enquanto tomavam uma cerveja. O assunto era o gado, as cercas, os cavalos. A vaca que fugiu. Não tinha como eu não ouvir. 
    Todos com o rostos queimados do sol, reparei. Identificando um dia inteiro de lida no campo. Gente simples, bem educada. Me cumprimentaram quando cheguei e saí. Realmente é muito diferente o mundo social encontrado em cidades pequenas e grandes.
    Logo estava muito bem acomodado. Passava das 22 horas. Fiquei feliz por mim! Fazia tempo que não me sentia assim. Feliz por eu mesmo!
    Em instantes me ajeitei e dormi. Fui acordado de madrugada por uma forte chuva. Muitos trovões. Droga, só falta não conseguir chegar ao mirante da rocinha. Outro ponto alto, bonito, com uma imagem ímpar, de onde eu não imaginava que conseguiria ver o oceano atlântico. 
Cansado, dormi novamente.

Continuação, mirante da rocinha, parte IV

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